Quando José Irisvan se assentou em um lote do Perímetro irrigado Jacaré-Curituba, no município de Canindé de São Francisco, dois pés de umbuzeiro já estendiam seus galhos na propriedade e lançavam a sombra bendita necessária aos que fazem do Alto Sertão sergipano um berço de invenções.
Em meio à tonalidade da “mata branca”, o umbuzeiro chapisca a paisagem de folhas, desenhando vigor e vida onde o olhar encontra calma. O ciclo de vida da árvore é um símbolo da harmonia entre o tempo e a terra que marca a vida do sertanejo.
Inspirado por essa convivência com o bioma Caatinga, Irisvan moldou uma consciência ambiental que guia sua jornada. Hoje, ele é um dos empreendedores que atuam em sintonia com o ritmo do Sertão, mostrando que é possível fazer do progresso um ato de respeito à natureza.
Para ele, empreender com sustentabilidade é valorizar os ciclos da terra, aproveitando suas potencialidades sem romper com sua essência. E é isso que faz no projeto de turismo rural que ele, a esposa Gessiane e os filhos desenvolvem em Canindé de São Francisco, cidade de 26.834 habitantes (Censo 2022) a cerca de 190 km de Aracaju, capital sergipana.
A família utiliza os cinco hectares do perímetro irrigado para tocar uma produção agrícola diversificada, com foco em acerola, banana, cana-de-açúcar e macaxeira, além da coleta do umbu, que serve à fabricação de doces e bebidas. Em paralelo, através de agendamentos, recebe grupos de turistas na propriedade e os conduzem por uma experiência imersiva no modo de vida sertanejo.



O objetivo é proporcionar uma nova experiência aos visitantes do Alto Sertão, região conhecida pela deslumbrante paisagem dos Cânions do São Francisco, pela riqueza histórico-cultural da Rota do Cangaço e pela imponência da Usina Hidrelétrica de Xingó.
Por essa essência se define o Sítio Frutos do Sertão, um empreendimento que, segundo Irisvan, une tradição e sustentabilidade, tendo o saber como primeira matéria-prima. Do pai, Antonio Manoel, ele herdou o conhecimento da lida com a terra. Da própria Caatinga, a resiliência e a capacidade de adaptação.

Fotos: Larissa Moura
Apesar de ostentar a vida sobre um solo fértil, por muito tempo sua produção era escoada apenas por atravessadores ou vendida em feiras livres, o que limitava o retorno financeiro.
“Como veio o projeto irrigado, para fazer o plantio de fruticulturas, a gente teve a ideia de aproveitar melhor, por não ter uma venda direta. Quando a gente produzia, ou ficava na mão do atravessador, ou a gente ia para uma feira livre. Quem não tem condição de fazer isso, acaba perdendo na roça”, destaca Irisvan.
A virada veio após uma consultoria, onde conheceu o funcionamento do empreendedorismo através do turismo rural. A ideia encantou Irisvan, que decidiu investir no sonho de expandir a produção e mudou o foco das culturas de milho e feijão para fruticultura.
Hoje, os frutos de mais de 400 plantas de acerola se transformam em vinherola, uma bebida fermentada entre o vinho e o vinagre, e em geleias artesanais. Da banana, a família aproveita a biomassa seca. Da cana-de-açúcar, extrai o melado, da macaxeira, a tapioca, e do umbu, faz licores e doces.


Fotos: Larissa Moura
Esses produtos derivados do viés agrícola tornam ainda mais saborosa a vivência que Irisvan, Gessiane e os filhos oferecem no Sítio Frutos do Sertão. Mais do que um lugar de cultivo, o sítio é um espaço de encontro com a terra.
Quem visita tem contato com dois pés de umbuzeiro enraizados na propriedade e pode conhecer o sistema de compostagem utilizado, baseado nos ideais da agroecologia.


Fotos: Larissa Moura
“O turista chega e vai ser recebido debaixo de um pé de umbuzeiro, e a gente vai apresentar uma degustação de um licor de umbu, já que o umbuzeiro virou uma árvore símbolo, que não pode ser desmatada da Caatinga. A gente mostra as nossas plantações e ainda fazemos um ‘colha e leve’ no nosso vale de acerolas”, diz ele.
Segundo Irisvan, desde o início, a preservação da natureza é parte sagrada de seu pequeno negócio.
“A gente só retribui ao chão o que recebemos todos os dias. Apresentamos também para o turista que não trabalhamos com produtos químicos. E desde quando a gente foi acampado aqui nesse projeto, a gente já tinha essa noção de proteção, por isso que a gente não desmatava as áreas”, conta.
E se antes a dificuldade era escoar o que produziam, o caminho ficou mais fácil após o Sítio Frutos do Sertão ser inserido no ‘Circuito dos Umbuzeiros’, um roteiro de turismo rural coordenado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) em Sergipe.
A cooperação entre os empreendedores que compõem o circuito permite alavancar os negócios. Do perímetro Jacaré-Curitiba, os produtos da família de Irisvan vão parar nas vitrines de outros estabelecimentos do Sertão sergipano, o que ajuda a captar novas vendas, além de consolidar a marca do Sítio Frutos do Sertão.
Da terra para a terra
A paisagem sertaneja guarda uma força simbólica que transcende a resiliência. Se a Asa Branca, imortalizada por Luiz Gonzaga, alça voo diante da seca, é ao som do primeiro trovão que ela retorna, movida pela saudade, mas também pela esperança. Diferente dela, há quem permaneça, não pela falta de asas, mas pela convicção de que o Sertão também é lugar de abundância.
Essa visão é parte da essência do Caprisertão, um empreendimento liderado por Thiago Angelo e sua esposa, Karem Lorraine, no município de Nossa Senhora da Glória, que abriga 41.202 habitantes (Censo 2022) a 117 km de Aracaju. O casal se dedica ao turismo rural e se orgulha de conduzir um negócio que alcança 70% de autossustentabilidade.
“Aqui a gente planta, cria, colhe e produz. A gente tanto trabalha na parte da agricultura, na pecuária, com caprinos e ovinos, como também no artesanato. E aqui na propriedade a gente tem um ponto de atendimento ao turista, a gente promove o bem-estar humano, que é estar em contato direto com a natureza e com os animais”, explica.


Thiago e Karem criam caprinos e ovinos direcionados à produção de leite e para o corte. A carne in natura é vendida em feiras livres e o couro é destinado à produção de artigos como chapéus, bolsas e sandálias. Com o leite, eles fabricam queijos, doces, biscoitos e bolos, sempre incluindo frutíferas do sertão para diversificar o cardápio.

“No caso do biscoito, a gente já coloca a geleia de umbu ou a geleia de seriguela, e o que a gente puder fazer para acrescentar nesses produtos, a gente faz. Então, tudo que aquilo que o Sertão tem, a gente consegue resgatar para agregar na produção diária. A gente tem umbuzeiro aqui na propriedade e a vizinhança é um santuário de umbu”, relata.
Thiago e Karem também integram sua propriedade ao Circuito dos Umbuzeiros, promovendo visitas turísticas que mostram todo o processo de cuidado com os animais e a produção na agroindústria que tocam. Durante o itinerário, os visitantes também são convidados a ouvir Thiago cantar as clássicas canções “Asa Branca” e “A volta da Asa Branca”, encerrando a experiência com um toque poético.


Fotos: Larissa Moura
Para Thiago, a iniciativa empreendedora é uma expressão de adaptação e visão, com o potencial de revelar riquezas.
“Quando a gente empreende, a gente consegue abrir portas. E se a gente tem, sabe fazer e não busca empreender, a gente não consegue tirar aquela luz debaixo da vasilha, então, desde quando a gente tem o espírito empreendedor, a gente consegue enxergar o mundo de outra forma”, afirma.
Mais do que um projeto econômico, a relação com a terra é para eles um reencontro.
“A gente saiu da terra e voltamos para conviver com aquela terra de maneira mais sublime, em que a gente se encanta a cada o”, diz o empreendedor.
A prosperidade de negócios como o Sítio Frutos do Sertão e o Caprisertão é respaldada por dados consistentes. Em novembro de 2022, o Observatório de Sergipe destacou a fruticultura como uma vocação econômica consolidada no município de Canindé, enquanto apontou a agroindústria e a indústria de laticínios como setores em franca expansão em Nossa Senhora da Glória.
Paralelamente, indicadores de empreendedorismo reforçam esse panorama. Entre 2021 e 2024, o Sebrae realizou mais de 7.200 atendimentos a empreendedores na região do Alto Sertão Sergipano. Apenas até maio de 2025, já foram registrados mais de 1.000 atendimentos.
Dados fornecidos pela Prefeitura Municipal de Nossa Senhora da Glória indicam que há atualmente 1.310 microempreendedores individuais (MEIs) na cidade, além de aproximadamente 1.301 empresas com cadastro ativo. Em Canindé, os números apontam para 535 MEIs, 1.080 microempresas e 56 empresas de pequeno porte, segundo informações da gestão local.
A árvore sagrada do Sertão
A Caatinga, o único bioma exclusivamente brasileiro, é frequentemente retratada sob a perspectiva da escassez, mas apesar dos desafios hídricos ainda fazerem parte da vida de muitos sertanejos, esse olhar limitado ignora a riqueza de biodiversidade e cores que caracteriza o ecossistema. Nele, o umbuzeiro se destaca como um dos símbolos, presente tanto na paisagem quanto na memória e no cotidiano das comunidades locais.
Muito além de oferecer sombra e beleza, o umbuzeiro produz um fruto de sabor marcante, rico em nutrientes e com elevado potencial socioeconômico. Maria Cícera Oliveira, produtora rural e empreendedora em Canindé de São Francisco, é um exemplo de quem enxergou essa oportunidade.
Há 16 anos no município, ela deixou seu emprego em uma lanchonete para explorar as possibilidades da fruta, associando a coleta do umbu a outras atividades agrícolas típicas do Sertão.
O umbu, com sua coloração verde-amarelada, polpa ácida e aroma intenso, tem conquistado espaço crescente na produção de doces, geleias, sucos e polpas, figurando como uma alternativa promissora de geração de renda. Durante a safra, que pode se estender de novembro a abril, Maria Cícera comercializa a fruta em feiras livres.



Fotos: Matheus Costa
“Nas feiras, o pessoal já procura. Quando o umbu acaba, algumas pessoas ligam para eu levar a polpa. É uma renda boa porque a procura é grande. O pessoal compra para fazer geleias, geladinhos, picolé do umbu também”, explica.
Para garantir renda na entressafra, Maria aproveita o excedente para produzir polpas congeladas.
“A gente cozinha ele, a numa arupemba, que é uma peneirinha, tira a pelezinha mais dura e o caroço, e o que sobra a gente coloca nas bolsinhas e congela”, detalha.

Foto: Matheus Costa
A importância do umbuzeiro vai além da economia local. Augusto Vinícius, biólogo formado pela Universidade Federal de Sergipe, desenvolve pesquisas que ressaltam o valor socioambiental dessa espécie nativa da Caatinga.
“Essa planta tem grande importância social, econômica e ambiental, especialmente para o semiárido nordestino, incluindo Sergipe”, destaca.
O umbuzeiro, cujo nome científico é Spondias tuberosa Arruda, pertence à família Anacardiaceae e é endêmico do bioma Caatinga. Augusto explica que a planta possui características que garantem sua sobrevivência em condições de baixa disponibilidade hídrica.
“Ela conta com o xilopódio, uma estrutura localizada na raiz, popularmente conhecida como batata do umbuzeiro. Esse órgão armazena água e nutrientes, permitindo à planta resistir ao período seco, mesmo na ausência de chuvas”, detalha o biólogo.
Dessas raízes subterrâneas em forma de batata é que vem o nome da árvore, de origem indígena, y-mb-ú, que significa “árvore que dá de beber”.
No entanto, essa riqueza pode estar sendo ameaçada. Augusto alerta para a destruição de muitas áreas naturais de Caatinga e, por consequência, de espaços onde o umbuzeiro prospera.
“A gente tem um avanço muito grande da agropecuária e tem destruído muitas áreas de ocorrência natural do umbuzeiro, que são as áreas de Caatinga”, destaca Augusto.

Foto: Wictor Marcelino
O biólogo ressalta a escassez de unidades de conservação estaduais na Caatinga sergipana, mencionando o Monumento Natural Grota do Angico como a única. Em paralelo, destaca a necessidade de valorizar a cadeia produtiva do umbu no estado através da criação de uma cooperativa.
“A gente pode tentar criar novas unidades de conservação, sejam elas municipais, estaduais ou nacionais. E podemos também fomentar o pequeno agricultor, para que ele possa valorizar o umbu. É importante que principalmente eles possam se organizar para ter o fomento disso, porque além do consumo e da venda do umbu de forma in natura, eles podem estar produzindo novos produtos”, completa.
Segundo a Empresa de Desenvolvimento Agropecuário de Sergipe (Emdagro), os primeiros os neste sentido já estão sendo dados. O órgão deu início a um levantamento técnico nas propriedades rurais do município para identificar regiões com alta concentração de umbuzeiros.
A proposta é orientar agricultores sobre formas de manejo, beneficiamento e comercialização do fruto. De acordo com a Emdagro, a iniciativa integra uma estratégia mais ampla de incentivo à agricultura familiar e ao uso consciente dos recursos do bioma.
O Sertão tem a ensinar
Aproveitar todo o potencial da Caatinga de forma sustentável é um dos pilares que norteiam a trajetória de Timóteo Domingos, de 28 anos. Criado em uma comunidade rural em Canindé de São Francisco, ele desenvolveu um olhar atento para identificar o uso culinário de plantas nativas do bioma.
A colheita limitada ao inverno e a dependência de sistemas de irrigação para sobreviver durante as épocas de estiagem também contribuíram para moldar essa percepção.

Foto: Matheus Costa
“Desde criança eu sempre observei que algumas espécies nativas, como a palma, que a gente tem o cultivo ordenado para o gado, mas não comia, o xique-xique e o mandacaru, eram espécies que tinham em abundância principalmente durante o período de estiagem”, relembra Timóteo.
O menino que começou a trabalhar como vendedor de cocadas e bolos no bairro Olaria, onde cresceu, hoje propaga conhecimento. Desde cedo, sua determinação o levou a compartilhar e explorar novas possibilidades.
Hoje, Timóteo é proprietário do Cactos, um restaurante especializado em pratos com cactáceas, e da startup Rei do Cacto, que oferece doces, geleias e cursos digitais sobre a manipulação dessas plantas.
“Hoje nós trabalhamos com doces à base de cacto, do mandacaru, do xique-xique, do umbu, com geleias de xique-xique também, e a barra de cereal que está em fase de teste. E, além disso, os pratos salgados que são servidos no restaurante, que aí vem um cacto à parmegiana, o xique-xique à milanesa, a gente tem os cactos fritos, onde a gente faz similar a uma batata chips. Eu vejo mais a cozinha como um laboratório”, destaca.
Além da produção gastronômica, Timóteo se dedica a experimentar e desenvolver receitas, transformando suas criações em um repertório de técnicas que celebram a cultura e as tradições sertanejas.
Com o tempo, os experimentos domésticos deram origem a livros de receitas, cursos sobre as técnicas de manipulação e conteúdos digitais voltados para a sustentabilidade.
“Nós temos hoje um curso online de manipulação de cactos que vai desde técnicas de colheita na mata nativa, técnicas de plantio e receitas com todo o o a o de como retirar espinhos, como retirar a pele. É um o a o bem detalhado para quem quer empreender com o cacto, e tudo de forma sustentável”, explica Timóteo.
Ele complementa que a startup Rei do Cacto expandiu suas operações para o meio digital, priorizando o alcance de pessoas em diversas regiões do país.
“Quem mora no Rio Grande do Norte, em Pernambuco, no Piauí, consegue ter o a um curso de manipulação, a um curso de produção de doces e consegue replicar, e também pode transformar isso em uma fonte de renda”, completa Timóteo.
Timóteo também reflete sobre o impacto ambiental e social do seu trabalho. Em sua visão, o desmatamento da Caatinga ocorre, em parte, pela falta de conhecimento sobre o potencial comercial do que nela pode ser produzido.
“Se a gente a um olhar comercial do nosso bioma, a gente consegue estimular o agricultor que hoje é obrigado a desmatar para plantar milho e feijão, para sobreviver, a começar a ter um olhar diferente, a preservar, e além de preservar, começar a ter um cultivo desses produtos nativos de forma ordenada, e através disso ter uma fonte de renda continuada, principalmente durante as secas”, afirma.

Foto: Matheus Costa
Sobre sua trajetória no empreendedorismo, ele destaca a essencialidade para a transformação de realidades.
“A gente não consegue sobreviver se não for pelo empreendedorismo. Eu acredito que é o caminho para a evolução, tanto do ponto de vista ambiental quanto do ponto de vista social. A gente precisa entender que, através de uma microempresa que seja ou uma grande empresa, a gente consegue ter um impacto direto na vida das pessoas, na comunidade e no meio ambiente. Então, eu acredito que é um constante olhar ao nosso entorno”, conclui.
Do outro lado da jornada da aprendizagem, está Belizarina dos Santos, mais conhecida como Dona Bela. Alagoana, ela chegou a Sergipe no ano de 2005 e começou a trabalhar no ramo de tapiocaria na cidade de Canindé de São Francisco. Contudo, naquela época, o negócio não prosperou.
Há cinco anos, Dona Bela decidiu mudar a rota. Em uma nova propriedade, ainda em Canindé, fundou a Casa da Roça, onde ou a oferecer não apenas tapiocas. Agora com um restaurante, atrai turistas para uma experiência gastronômica da culinária sertaneja.
A empreendedora de 63 anos é uma aprendiz do Sertão. Com as adversidades, aprendeu a se reinventar, a valorizar os recursos disponíveis e a construir um negócio sustentável.


Fotos: Matheus Costa
“Eu trabalho com os meus netos e minhas netas. São cinco pessoas trabalhando aqui. Para minha vida é muita coisa, porque é terapia, e é para o sustento mesmo, que já tem emprego para meus netos. É muito importante”, diz ela.
O carro-chefe da Casa da Roça continua sendo a tapioca, mas o cardápio foi ampliado para incluir outros pratos típicos do sertão. Além disso, a vitrine do empreendimento abarca doces e geleias de frutas. O espaço, colorido e arejado, carrega as características marcantes da cultura sertaneja: toalhas de chita, chapéus e esteiras de palha.
Grande parte da matéria-prima utilizada vem da própria roça de Dona Bela ou de outros empreendedores que integram o Circuito dos Umbuzeiros, destacando a importância da colaboração local.
“A massa da tapioca eu já compro de um colega também que faz parte dos umbuzeiros. E aqui temos frutas, macaxeira a gente também planta, milho para fazer bolo, acerola, goiaba, laranja, eu tenho limão também, a gente colhe daqui mesmo”, explica.
Ela conta que uma consultoria do Sebrae trouxe conhecimentos técnicos, como gestão e atendimento ao público, que ela incorporou com maestria ao seu aprendizado resiliente, herdado do sertão.

Foto: Matheus Costa
“Mudou muito a minha vida. Eu acho que é legal, porque eu não era assim. Eu agora eu sou mais feliz, graças a Deus. Eu já recebo turistas, e tem guias trazendo o pessoal para cá e também das outras cidades. Assim como Piranhas, Aracaju, de todas essas cidades vem gente para cá, já conhecem a Casa da roça”, afirma sorridente.
Caatinga Resiste
“A Caatinga está inteiramente dentro do território brasileiro, abrangendo pouco mais de 10% do território nacional, e vem sofrendo ao longo dos anos com degradação ambiental, desmatamento e perda significativa de seu bioma”, explica o professor Elias Carnelossi, docente de Zootecnia da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
De acordo com ele, mais de 55% do território de Sergipe está dentro do bioma, mas apenas 16% da vegetação nativa, incluindo aquela na área de Caatinga, permanecem intactos.
“A Caatinga em Sergipe está praticamente 89% degradada. Temos fragmentos isolados e, desses 16%, apenas cerca de 20% estão em áreas protegidas, o que é insuficiente para conservar os recursos naturais, ecossistemas e a biodiversidade”, complementa.
Entre 1985 e 2023, o bioma perdeu cerca de 8,6 milhões de hectares de vegetação nativa, conforme dados do MapBiomas. Para enfrentar essa situação, ações de conservação têm sido implementadas em diferentes regiões do semiárido nordestino.
Um exemplo de destaque é o Projeto Convert – Conservação e Recuperação da Caatinga no Monumento Natural do Rio São Francisco. Desenvolvido nas proximidades do Monumento, no assentamento Mandacaru, em Canindé de São Francisco, o projeto buscou promover a restauração ambiental e a geração de oportunidades econômicas para a comunidade local.
Coordenado pelo professor Elias e desenvolvido com o apoio de diversas instituições, o Convert atuou em três frentes principais entre 2020 e 2024.
“O projeto tem três vertentes, vamos resumir assim: uma parte que é a de engajamento, capacitação, educação ambiental e formação da comunidade, com a construção de um viveiro de mudas. A outra é a recuperação em si, in loco, do plantio de diferentes espécies de mudas, e a outra é de pesquisa”, detalha o professor.
O projeto, que faz parte do GEF Terrestre, uma iniciativa do Ministério do Meio Ambiente, contou com a atuação de uma equipe multidisciplinar de pesquisadores da UFS e parceiros, e teve foco na recuperação de 600 mil metros quadrados de áreas degradadas, inclusive com a instalação de um viveiro para produção de mudas nativas da Caatinga.
O viveiro tornou-se um marco da iniciativa, não apenas por contribuir para a recuperação ambiental, mas também por fomentar o empreendedorismo na comunidade.
“Eles viram logo no início o potencial que eles tinham de, por exemplo, coletar frutos. Por exemplo, o umbuzeiro, que eles chegaram no início a fazer essas coletas. Depois, a gente fez esse trabalho de conscientização que eles podiam buscar e vender, trabalhar com as sementes, fazer os bancos e sementes, tanto para fazer os plantios, como para ter mudas no viveiro e vender essas sementes no mercado”, explica Carnelossi.
Com a criação da Associação Empreender Mandacaru, mulheres da comunidade assumiram o protagonismo desse processo, produzindo e comercializando mudas e sementes nativas da Caatinga.
“Eles chegaram a vender algumas mudas. Então, tão mantendo o viveiro, até mesmo depois do projeto ter finalizado, eles ainda mantêm algumas mudas lá. De vez em quando vendem”, completa o professor.
Cleonice dos Santos é uma das mulheres que integraram o projeto e atualmente contribui para a manutenção do viveiro no assentamento Mandacaru.
“Nós íamos pra Caatinga catar as sementes, aí depois quebrávamos a dormência delas, que precisa, para colocar na sementeira. Nós plantávamos por dia cerca de 500 mudas no mato, e veio o projeto para nós darmos continuidade, e até hoje nós estamos aqui”, conta.
Cleonice relata que sua visão sobre a natureza mudou significativamente ao compreender a extensão da devastação na Caatinga.
“Eu conheci através do projeto a mata, que estava muito devastada, muito acabadinha mesmo. Aí depois do projeto foi que comecei a entender um pouco da natureza, que não precisamos acabar, tem que replantar tudo de novo”, lembra.



Fotos: Matheus Costa
Além da compensação financeira pelo trabalho de reflorestamento e manutenção do viveiro, já prevista no projeto, ela destaca a possibilidade de gerar renda adicional com a venda de mudas como uma conquista importante.
“Depois que nós entramos aqui no viveiro, nós vendemos plantas já. Nós ganhávamos o dinheiro e ainda vendíamos. Foi bom porque gerava renda para mim e para as outras companheiras também que fazem parte do viveiro”, diz ela.
Para que mais empreendedores possam prosperar na Caatinga, é imprescindível manter o bioma de pé. Esse é o alerta do professor Elias Carnelossi. Em suas palavras, a valorização da biodiversidade, aliada à capacitação e à conscientização ambiental, tem o potencial de transformar realidades e gerar renda de forma sustentável.
“Eu acho que a gente precisa, tanto no Sertão, na Caatinga e no Nordeste, um pouco de desmistificar as coisas. Tem muita coisa do ado que precisa ser um pouco abandonada, o uso e ocupação do solo precisam mudar urgentemente. A gente não está mais na condição de recursos que a gente imaginava que fossem infinitos. Então, a gente precisa ver que a Caatinga em pé, a floresta em pé, ela também gera recursos, que podem ser aproveitados”, afirma.
Outra iniciativa inovadora nesse sentido foi idealizada pela Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa).
Sob a coordenação do Ministério Público de Sergipe (MPSE), liderado pela promotora de justiça Aldeleine Melhor Barbosa, ela busca articular ações integradas para preservação da Caatinga.

Foto: Matheus Costa
“É um bioma que tem uma riquíssima biodiversidade, tanto de fauna como de flora. É um bioma fundamental no equilíbrio climático do planeta, sobretudo porque a gente está tratando de um bioma que é um dos mais eficientes sumidouros de carbono”, destaca a promotora.
Ela enfatizou a urgência de proteção diante do desmatamento acelerado constatado em fiscalizações recentes do Ministério Público de Sergipe.
“Surgiu a partir de alguns dados e algumas fiscalizações em que a gente constatou um desmatamento extremamente acelerado do Bioma Caatinga”, completa.
O projeto, com duração prevista até abril de 2026, está alinhado com a Agenda 2030 da ONU, e visa contribuir diretamente para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em especial o ODS 13, que aborda ações climáticas, e o ODS 15, voltado à proteção e recuperação de ecossistemas terrestres.
Entre as estratégias do projeto, estão o combate ao desmatamento ilegal, o mapeamento de áreas prioritárias para conservação e o estímulo à validação do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Ferramentas como o Sistema Nacional do Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor) também serão utilizadas.
A promotora explica que há um esforço para avançar nos trabalhos de fiscalização de forma integrada com órgãos de controle e forças de segurança.
“Buscamos também uma atuação relacionada com uma maior rigidez com relação à questão das autorizações de supressão de vegetação, porque a gente tem percebido que muito do que se desmata é com autorização, inclusive porque essas autorizações são concedidas, mas elas não são posteriormente fiscalizadas”, alertou.
Além disso, o projeto também inclui uma análise criteriosa das áreas prioritárias para preservação do bioma.
“Identificamos três critérios prioritários: extensão da área, sua importância hídrica e a suscetibilidade à desertificação. Esses critérios nos ajudarão a selecionar as áreas mais importantes para proteção, visando, sobretudo, a formalização de unidades de conservação”, detalha Aldeleine.
Um dos pilares do projeto é o engajamento das comunidades locais, com exemplos concretos de sucesso já registrados em Sergipe. A promotora Aldeleine relembra o projeto “Memória Viva”, realizado na região da Borda da Mata, na cidade de Moita Bonita, onde a comunidade local reflorestou áreas degradadas.
“A própria comunidade cuidou de reflorestar, de recuperar aquela área que tinha sido degradada. 20 anos depois, você a naquela região e já consegue verificar uma mata totalmente recuperada, um meio ambiente devidamente equilibrado. É plenamente possível o envolvimento da sociedade nesse ponto, sobretudo nesse processo de recuperação, não só perante as associações de moradores, mas também perante as escolas”, relata.
Esses negócios e iniciativas de empreendedores, instituições e pesquisadores revelam que a aridez do Sertão não pode ser a única voz a narrar sua história. A luta pela sobrevivência, marcada pela escassez hídrica e outros desafios, dialoga com a urgência de proteger um bioma em risco.
Se é de vida que falamos, é preciso reconhecer a potência transformadora de quem ousa criar, preservar e reimaginar. O Sertão pode vestir o alaranjado da seca, mas também tem na essência o verde da esperança, uma paisagem que pulsa, desde que cuidada, em novas cores e possibilidades.